Recentemente, discutindo com uma amiga da bruxaria, fiquei pensando a respeito da marca da bruxa. O folclore e a história das bruxas relatam que os corpos que são entregues a Arte da bruxaria possuem uma marca: dada pelos espíritos ou pelo diabo, a marca é quem nos separa das pessoas não bruxas.
Em algumas tradições, possuir uma marca específica daquela tradição é pré requisito para adentrar seus mistérios. A conversa com minha amiga era exatamente sobre isso, pois ela me contou de casos de bruxas que diziam ter manipulado a aparição da tal marca no corpo, conseguindo colocar, magicamente, a tal marca em seu corpo etérico, ganhando passabilidade dentro da tradição em si.
Me questionei duas coisas com essa história: a ilusão do poder na bruxaria e a marca que beira muitas vezes a eugenia, mas por enquanto me aprofundarei na questão do poder.
Ouvindo histórias sobre essa mesma bruxa grande e poderosa que cria marcas imagináveis em seu corpo, a coisa se complica. As histórias parecem que foram retiradas de livros de fantasias ou de ficção científica de tão incríveis e mágicas que são. Essas pessoas, infelizmente, ganham notoriedade no meio da bruxaria e levam consigo um grupo de pessoas que acreditam nos tais poderes mágicos da bruxa, esperando se tornarem como ela. Obviamente essas pessoas ocupam cargos de liderança e posições de destaque em tradições mágicas. A tal bruxa mencionada acima nem precisou cumprir os rituais tradicionais do caminho em que inseriu, é tão poderosa que os próprios espíritos aceitaram sua iniciação ser diferente.
É muito fácil cairmos na teia poder-ilusório do outro. Por experiência própria, passei por um coven em Campinas no ano de 2015 onde o tal “sacerdote” do local se dizia a pessoa mais poderosa que conhecia. Esse mesmo sacerdote incorporava daemons da goécia, espíritos asiáticos e deuses para atender pedido dos homens do coven e em troca, como recompensa, pedia por sexo.
Parece que situações assim são fáceis de reconhecer, mas não são. Quando você entra no jogo psicológico feito por figuras de autoridade como essas é difícil reconhecer - e dar voz ao seu próprio poder - para sair disso. Como um relacionamento tóxico que te envenena pouco a pouco. Fiquei quase um ano nesse lugar e comigo nunca houve abuso sexual, mas lido com reflexos dos abusos psicológicos que sofri até hoje. Minha bruxaria foi minada, picotada, dilacerada. O mágico, depois que saí desse lugar, mal existia para os meus olhos. Fui desencantado e sei que muitas bruxas passam pelo mesmo.
Esse mesmo sacerdote dizia estar fundando uma tradição hecatina. Criava guerras mágicas com outros nomes de destaque da bruxaria brasileira, dizendo que esses nomes tinham inveja da quantidade de alunos que possuía. Éramos obrigados a participar das guerras mágicas, ficando acordados até altas horas da madrugada movendo magia e no final sem ao menos receber uma alimentação para recompor o trabalho.
As minhas vivências eram todas julgadas. Meus transes? Eram falsos. Minhas visões com os deuses? Eram duvidosas. Tudo o que eu compartilhava ao sacerdote era destituído de poder, ele roubava o meu poder quando invalidava toda a minha experiência pessoal na bruxaria.
Ficar pelado em rituais era basicamente obrigatório. Quando consegui, foi para entrar em uma piscina, em pleno inverno e a noite. A água congelando, chegava a queimar minha pele de tão fria. O motivo disso? Passar pela prova da água. As bruxas iniciadas na tradição desse lugar precisavam passar pelos cinco elementos. Eu só passei por essa, não cheguei - graças aos deuses - no da terra, onde a pessoa era enterrada viva, por exemplo. Ah… a iniciação era feita com um athame vermelho de ter ficado no fogo, onde ele fazia um corte no seu braço. As pessoas ganhavam literalmente uma marca, feita com um corte de uma lâmina afiada e quente. Não ganhei nenhuma, mas até isso na época me incomodava, me sentia inferiorizado por não estar apto para receber tais iniciações, hoje obviamente vejo como foi um livramento.
Pessoas como esse sacerdote, que guiam grupos mágicos, possuem uma ilusão de que são poderosas. O poder é algo narrado de forma tão fantasiosa que se enraíza no imaginário das bruxas. Uma vez fui atender um bruxo na mentoria, e quando compartilhei minhas inseguranças na prática mágica ele se assustou, dizendo que não imaginava que eu tivesse insegurança com transes, pois parecia que eu sabia de tudo ou que era bastante experiente na magia. Eu ri na hora e me questionei: como alimentamos nossa expectativas sobre as outras bruxas a partir do que recebemos, né?
Na mentoria, recebo muitas pessoas que ficam inseguras com a sua prática por conta do conteúdo que consomem. Bruxas que duvidam da sua capacidade porque tudo nas redes sociais é incrível, é extático, é transcendental. Bruxas que duvidam que são capazes de fazer um voo da alma, pois fulana quando compartilha sua experiência nos reels fala de um jeito que parece realmente impossível, pois é fantasioso. Bruxas que não acreditam que são capazes de movimentar feitiços poderosos, porque figuras como o sacerdote do meu antigo coven e a bruxa poderosa criadora de marcas invisíveis no corpo se colocam nesse lugar de poder. O poder se torna o mecanismo de opressão de outras bruxas.
Poder. Uma das pontas do pentáculo de ferro. Todas as vezes que penso sobre poder, me questiono se estou colocando poder sobre outras pessoas ou se estou permitindo pessoas colocarem poder sobre mim. Aprendo, quando reflito sobre poder, que a melhor maneira dele é o poder compartilhado. Quando nos unimos e compartilhamos o nosso poder em prol de alguma questão, causa, magia, celebração, seja o que for. Poder só serve (para nós que somos da classe social que está perdendo) quando nos unimos. Há uma ilusão em achar que a bruxaria te torna poderosa a ponto de romper esse lugar, de se colocar em outro maior, de subir no pedestal. No final das contas há uma outra estrutura maior ainda rindo da sua cara, dizendo para você se colocar em seu devido lugar, pois o seu poder não quebra o sistema em que estamos.
Por isso acredito muito na potencia da coletividade. Para mim não há bruxaria sem coletivo, sem comunidade. Somos sim nossas próprias autoridades espirituais, mas estamos enraízadas no coletivo. Somos uma floresta conectada por raízes embaixo da terra. Poder aqui é alimento. É algo que contruímos juntos a medida que caminhamos.
Não me vendo mais a sacerdotes que concentram todo o poder somente em suas mãos. Quando consegui sair desse coven que participei, cheguei a chorar de felicidade. Estava livre. O medo de sair e receber uma maldição era enorme, pois a manipulação de pessoas que tem o seu poder corrompido é sádica, eles conseguem te deixar culpado. Quando sai, implorei para Hecate me tirar daquele lugar e quando reuni coragem, contando ao sacerdote a minha saída, ele vira a narrativa para si dizendo que já sabia “pois havia sonhado com isso”. Nem mesmo na minha saída da tradição meu poder mágico foi creditado. Não foi reconhecido.
Escrevo novamente: há uma ilusão em bruxas que se dizem poderosas, pois no final do dia, ela é da mesma classe social oprimida, consumida e desestruturada como você. Ser poderosa aqui pouco importa, pois há um inimigo maior nos engolindo o tempo todo. Poder, nesse sentido solitário, é ilusão. Se torna concreto quando nos unimos, nos organizamos coletivamente e concentramos a nossa magia para um único alvo.
Deixo aqui a recomendação de um texto escrito por Yuki Fae, minha irmã bruxa de Tradição, sobre abuso em comunidades de bruxaria: https://feribrasil.com/2020/11/13/bruxaria-e-relacionamento-abusivo/
Esse texto é para mim de extrema importância para todos que trilham o caminho da bruxaria e que buscam se organizarem em comunidades ou tradições.
Que seu poder seja restituído, mas que não seja ilusório.
Bênçãos selvagens
Naê Della’Parma Prieto Salatim
👏👏👏👏👏👏👏👏👏