Acordo às 4:50, tomo um banho apressado, mas o suficiente para despertar por completo. Pego a minha mochila e saio de casa, vou para São Paulo - sou do interior - e apesar de serem poucas horas efetivas daqui até a capital (1h30 no máximo) tem outros meios de transportes no percurso, como o ônibus para o centro da cidade, uber até o local da saída do fretado, metrô e uber até a casa de uma das bruxas onde eu ficaria hospedado.
Às 9:30 sou recebido por um abraço gostoso, demorado, cheio de saudade. Logo depois veio um café, preparados por mãos de sereia, que aqueceu meu peito e me fez ter energia para o dia. Esperei alguma movimentação, queria que alguma bruxa começasse a sua prática diária para que eu pudesse praticar junto. Ouço a voz da sereia me chamando, quando subo, vejo ela penteando seus cabelos e me convidando para fazer a prática diária com ela. Fui guiado, me deixei ser guiado, respirando profundamente, movimentando energia, alinhando as almas.
O dia correu, era equinócio de primavera e tecemos magia e ritualizamos nas canções que cantamos a tarde toda, de noite, com bebidas e uma roda de conversa, falamos de causos de terror, histórias de assombração, sobre bruxaria como um todo e sobre cultura.
Cultura, como alguém que almeja ser antropólogo um dia, estudante de ciências sociais, esse é um termo que vejo dentro da universidade. Cultura tem muitas definições, mas a que eu mais gosto é que cultura é uma teia de símbolos e significados que a própria humanidade se enroscou. Permeia absolutamente tudo, gerando significados diferentes a partir de grupos diferentes. A cultura também possibilita a proximidade de grupos que se identificam como iguais, como a própria bruxaria, por exemplo.
Há muitos prós em se juntar em uma comunidade de bruxaria. Sempre ouvimos que o poder fica mais forte, que fazer ritos com outras bruxas movimenta mais magia e de fato isso é bastante notável, mas tem coisas que vão para além disso e que mostram o poder das relações em comunidade.
Entendam que estou me referindo nesse texto a comunidade saudáveis e não como comunidades que citei na edição #10, que são abusivas e destrutivas. Falo de comunidades que os papéis de liderança são compartilhados, de que as decisões se tomam pelo consenso e que o poder de cada bruxa é honrado e tem seu lugar respeitado.
Um dos melhores benefícios - e talvez um dos mais importantes - que essa conversa com bruxas da minha comunidade me despertou foi a relação da cultura dos grupos. Quando praticamos sozinho, e sou uma dessas pessoas, começamos a lentamente se afastar da magia que a bruxaria proporciona, começamos a ficar mais céticos, com maior probabilidade de achar que os deuses estão distantes ou que os espíritos estão distantes. Temos mais chances de abandonar a nossa prática diária também, pois os resultados surgem em outra velocidade e tudo demanda da sua vontade naquele dia de movimentar magia - ah não, talvez amanhã eu faço minha prática - e nessa vamos nos afastando do rio da bruxaria.
Quando estamos enraizados em uma comunidade, nadamos contra a correnteza como um corpo só. A nossa magia compartilhada entre os demais faz com que não nos sentimos sozinhos, faz com que tenhamos parâmetros importantes para trocar ideias e figurinhas sobre a magia. A comunidade aproxima o mágico, quase como que pudesse cortar um fio invisível que separa os mundos e que podemos andar no mundo da magia com maior frequência. A comunidade torna a bruxaria fantástica. As histórias compartilhadas pela oralidade, os gestos dos rituais, as experiências de transe em grupo, a abertura para compartilhar fragilidades e entender que você não está sozinha… isso tudo é importante. Em um mundo desencantado, a comunidade reitera o encanto.
Esse não é um texto para desqualificar a prática solitária das bruxas, até porque como eu disse logo cima, tenho uma comunidade mas não sou próximo fisicamente dela. Esse é um texto para mostrar a importância de ter um clã, um coven, um grupo, uma tradição saudável e como isso tudo altera a nossa visão de mundo, pois magifica a teia de símbolos culturais que tocam nosso corpo. As histórias se tornam possíveis. Sozinho, talvez eu ache inacreditável alguns feitos mágicos, talvez eu duvide mais de mim. Em comunidade, essa dúvida some, as conexões com o grupo desmancham as dúvidas e as inseguranças. O mágico é real.
Esse é uma edição dedicada à minha comunidade Reclaiming e Feri. Bruxas que me inspiram em vários momentos e que quando estamos juntes, o mundo ganha outro tipo de cor. Vocês são sagrades.
bênçãos selvagens
Naê Della’Parma